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O SPORTING CP é o retrato do nosso País

31 Out

Sinceramente por várias pensei escrever sobre o estado a que chegou o Sporting, mas sempre o evitei fazer porque tinha a convicção que qualquer crítica seria sempre entendida como uma pavloviana resposta aos maus resultados, típica de um adepto que gosta do seu clube. E assim me mantive, guardando na gaveta os factos – aqueles que muitos Sportinguistas já conhecem, mas que à maioria parecem insignificantes.

No entanto, o que me faz escrever, não são nem os factos – evidentes de má gestão desportiva – nem os resultados. Passo então a explicar.

No dia do jogo Porto – Sporting, Godinho Lopes ao visitar um núcleo Sportinguista no norte do País, foi assobiado por uma série de adeptos. A sua escolta (constituída em parte por elementos de uma determinada claque), decidiu ameaçar esses mesmos usurpadores (afinal não existem razões para assobiar, o clube tem sido magnanimamente gerido). Mais tarde, em pleno estádio, alguns destes indivíduos que ousaram contestar Godinho Lopes foram ameaçados e em alguns casos, mesmo agredidos por elementos da claque.

Perante isto, não basta apenas denunciar este caso, como muitos Sportinguistas o têm feito. Perante isto é preciso acordar.

Para alguns, 100 milhões de prejuízo em dois anos perpetrados por uma equipa de supostos gestores profissionais e bem pagos, não é suficiente.

Para alguns, 3 treinadores – e respectivas folhas salariais – em menos de uma época e meia, não é preocupante.

A alguns, o facto de a Academia – o nosso maior tesouro – e o Estádio terem sido passados para a SAD e já não pertencerem ao clube, não os faz dormir pior, e a ameaça futura que paira sobre nós de cada vez que o passivo aumenta, são apenas fait-divers dos jornais.

Para alguns, a SAD é o Sporting.

Mas a SAD não é o Sporting. A SAD é o BES e todos aqueles que nos emprestaram dinheiro, e cujo único interesse é reaver esse mesmo investimento.

Para alguns, o facto de sermos governados hà mais de 15 anos por uma espécie de máfia organizada que vendeu o clube a privados e o depena a cada dia que passa da relevância que sempre teve a nível nacional, é apenas algo normal, assim como normal é sermos sempre governados neste País pelos mesmos 3 partidos.

É pois normal que todos os que se seguiram a Roquette, Roquettes o são. Cada presidente é escolhido a dedo pelo clã e imposto aos Sportinguistas como única alternativa viável. Todos eles, pessoas de enorme valia e acima de tudo respeitados pela banca (em nome da SAD, do Ricciardi e do Espírito Santo, Ámen!)

Para alguns, a fraude das últimas eleições é apenas conversa de café e maledicência.

Para alguns, ouvir Rui Oliveira e Costa fazer constantemente apologia de uma direcção que envergonha e arruína desportiva e financeiramente o clube, não causa nenhuma estranheza, assim como tê-lo ouvido a fazer campanha por Godinho Lopes nas últimas eleições, em horário nobre com a conivência da RTP, não levanta qualquer tipo de objecção moral.

Para a maioria, o que ficou das últimas eleições não foi nem a vergonha, nem a afinação levada a cabo por alguns indivíduos nas mesas eleitorais. Foi o Futre, e o sócio, e o concentradissimo!

Para alguns, o enorme contingente de estrangeiros que chegaram nos últimos dois anos, tirando lugar aos nossos jovens, é apenas a consequência de um modelo que se tinha de adoptar para se poder voltar a rivalizar com os outros grandes. Se bem que algumas mais valias foram adicionadas, pergunto para que serviram as contratacções de Bojinov, Rodriguez, Luís Aguiar. Talvez os agentes e os intermediários possam responder a esta pergunta.

Alguns riram-se quando Godinho, em plena campanha falou nos 100 milhões. Pois aqui está a prova viva – 100 milhões, mas de prejuízo. De qualquer das formas já conseguimos rivalizar com o Braga, o que me parece que sempre foi o objectivo inicial do seu triénio.

Para a maioria, não causa estranheza que os rostos do nosso clube sejam sempre os mesmos, descendentes de uma velha aristocracia balofa que prosperou num País onde ainda há 30 anos atrás a maior parte da população era iletrada.

O Sporting Clube de Portugal, é um triste retrato deste mesmo País. O nosso passivo é tal e qual o nosso défice. A nossa SAD, nada mais do que uma grande Parceria Público – Privada, e o nosso glorioso passado é cada vez mais irrelevante, pois cada vez menos temos o poder para desenhar o nosso próprio futuro. A classe que dirige o nosso clube, é tão qualificada quanto aquela que arrastou o País para a ruína em apenas 30 anos.

Parece quase irónico que o único clube de relevo em Portugal que ostenta no seu nome a referência ao País, seja o retrato e a caricatura do mesmo.

 

 

Prendam-nos sff!

21 Out

Olhámos à  nossa volta.

Vemos o País devastado.

Jovens na porta de embarque de um qualquer aeroporto nacional. Na mala apenas a esperança que nada seja mais negro do que o que estão a deixar para trás.

As famílias despedem-se entre lágrimas e abraços. Revolta.

Arde no peito a imagem da(o) filha(o) a embarcar rumo ao desconhecido, um salto na escuridão que ainda assim parece mais reconfortante do que isto em que nos tornámos. Alguma esperança é sempre melhor que nenhuma esperança.

Portugal já não será! Para o ser, precisa de futuro, e esse tem embarcado nas portas de embarque  14, 15, 16 por esse país fora.

Alimentámos durante anos a ganância de uma escumalha medíocre e criminosa, elegendo governos constituídos por abutres e abastecendo o parlamento com inválidos. Tudo porque ora votamos neles, ora nem sequer perdemos tempo a votar. De uma forma ou de outra, contribuímos para a catástrofe.

Auto-estradas, Pontes, Exposições Universais, enfim PPP’s, obras de engenharia financeira com um único intuito – empobrecer muitos de forma a enriquecer uns poucos.

A justiça envolta por neblina tão espessa que é mais fácil e produtivo perseguir uma senhora que vende azeitonas sem luvas do que um corrupto.

E nas televisões, que espectáculo tão degradante! Ex-políticos, agora comentadores iluminados, que nos cospem na cara quando se passeiam por esses ecrãs como se não tivessem qualquer tipo de responsabilidade no estado a que isto chegou.

Nojo, é o que sinto quando os vejo.

A única solução pacifica que antevejo para que a situação se inverta, é apelar a que os prendam a todos. Porque exportá-los será impossível uma vez que ninguém quer receber de bom grado lixo tóxico.

App Anti-Corporativismo

29 Jun

É uma aplicação que dá muito jeito.

Está ainda em fase testes mas promete revolucionar o mercado da televisão, nomeadamente os blocos informativos.

Ainda não registei a patente, e também ainda não sei se irei contratar chineses ou indianos para o desenvolvimento do software.

Eu pelo menos já o testei e os resultados são animadores.

É uma espécie de filtro anti-corporativista que se instala no computador ou na televisão, e que quando um dirigente corporativista fala, ouvimos o que ele realmente deveria dizer em vez do que ele realmente diz.

Fiz o teste hoje de manha.

Primeira notícia, acerca de mais um detido pelo SEF que acabou por escapar, desta vez de uma forma menos espectacular que o outro que se escapou na semana passada, em pleno aeroporto. Desta vez, a culpa foi da empresa de segurança privada (o SEF contrata a privados aquilo que deveria providenciar?), assim como a aventura no aeroporto ficou-se a dever à falta de condições das instalações onde o recluso se encontrava. Todos sabemos quão precárias são as instalações aeroportuárias, se há sitio onde o controlo aos passageiros não é apertado, é certamente num aeroporto.

Mas ainda bem que se tratam apenas de indivíduos procurados internacionalmente, portanto pouco perigosos. Era pior se tivesse escapado algum activista da Escola da Fontinha, esses sim, grandes ameaças para a segurança pública, segundo a PSP.

Ora bem, foi portanto aqui, ouvindo o representante do SEF a explicar-se, que pude accionar pela primeira vez a minha App Anti-Corporativismo. Ao contrário dos restantes telespectadores que ouviram que a culpa tinha sido da empresa de segurança privada, eu ouvi o senhor dizer que a culpa estava dependente de diferentes factores. Desde o facto de quem estava de serviço (privado ou não) se desleixou, que provavelmente subestimaram o prisioneiro e que talvez, o facto do jogo da Selecção estar a passar na televisão naquele momento também possa ter influenciado a trágica conjectura.

Gostei.

Gostei da sinceridade, pena foi que tamanha amplitude espírito tivesse sido forçada pela minha recente invenção.

As noticias continuaram.

Um escândalo com médicos.

Semana passada, o SNS que tinha sido lesado em 50 milhões por uma burla relacionada com a prescrição de receitas de medicamentos que não chegavam às mãos dos doentes, mas que eram posteriormente vendidos.

Hoje, a suspeita da existência de um grande número de baixas fraudulentas!

Bom pensei, de certeza que vêm ai uns minutinhos de brilhante consternação por parte do Bastonário da Ordem dos Médicos. Que excelente oportunidade para testar a minha App!

Como sempre, se há um individuo que não nós defrauda as expectativas, ele é certamente o Bastonário da Sagrada e Muy Nobre Ordem dos Médicos.

Sobre a burla ao SNS, os telespectadores ouviram apenas que indivíduos pouco profissionais, esses existiam em todas as profissões.

O que eu ouvi através da minha app, foi que a Ordem iria estar atenta a este tipo de comportamentos e caso a suspeita fosse provada, iria aplicar uma sanção disciplinar tão forte e pouco usual, de forma a precaver situações semelhantes.

Acerca das baixas fraudulentas (que nenhum de nós tem conhecimento, são apenas mitos urbanos) o que os meus restantes compatriotas escutaram de voz tão sabia e indignada, foi que era um abuso que suspeitas estivessem a ser levantadas, sem que provas concretas fossem apresentadas.

Eu porém, sortudo por possuir tão extraordinário software, ouvi o que deveria ter sido dito. Que a própria ordem iria intensificar a fiscalização, de forma a promover uma campanha contra estes comportamentos abusivos.

Contente com o que tinha ouvido, rapidamente entrei em estado depressivo, do género daqueles momentos tipo Bruno-Alves-manda-a-bola-à-trave. É que com a minha app, passaríamos a viver num mundo de fantasia, onde deixaríamos de aligeirar as nossas próprias responsabilidades.

Afinal de contas sabemos que ser porta-voz de algo implica ter uma concepção particular da realidade.

Sabemos também que no livrinho “How to be a Bastonário for Nerds”, está explicito no terceiro capítulo que em caso ALGUM os nossos representados tiveram alguma responsabilidade em actos que lhes são imputados por terceiros. Existe também a recomendação (capítulo 7) que o pretendente a tão valoroso cargo deva possuir de preferência uma tonalidade de voz irritante, e acima de tudo, usar óculos, porque segundo o livro, mesmo quando as coisas correm mal ninguém tem coragem de bater em alguém com óculos.

AUTO DA BOA-FÉ (Parte 3)

4 Maio

SEM SOMBRA

À sua frente o Homem-sem-sombra parecia levitar no espaço como se de uma visão se tratasse. O seu aspecto fechado e sombrio, talvez por força da monocromia com que se apresentava vestido e do seu rosto de ângulos profundamente marcados, contrastava claramente com a impressão de leveza que a sua presença parecia transmitir ao Industrial.

Entre ambos nenhuma palavra era trocada.

E os segundos foram-se acumulando em forma de minutos.

Mania, essa a do tempo, de se fazer sentir mais presente quando as vozes se fazem menos sentir. Como se precisasse desses pequenos momentos de tensão para nós fazer lembrar a sua existência. Os olhos, no entanto, estabeleciam um diálogo diferente, e muito parecia ser dito para além do silêncio que pintava aquele espaço. Duas almas que se mediam para além do horizonte daquela sala. Ambos de olhares carregados, perfurantes, tentando perceber que adversário respirava à sua frente.

O Industrial sentia-se fascinado pelo facto de não conseguir ler, como fazia geralmente com toda a gente, o individuo que à sua frente desafiava as básicas leis da física. Nem a primeira camada se desmoronava perante o seu olhar inquisidor.

A porta,e o som de metal a ranger.

Em segundos, passos e uma respiração pesada, aproximando-se. O Estranho não voltou o olhar.

Nas suas costas um vulto entrando na sala acompanhado de mais passos, de uma nova presença que se apressava a fechar a pesada porta. Esta última, uma passada que o Industrial conhecia, tão espessa quanto as palavras que normalmente saiam daquele corpo, que o encarava agora debaixo da mesma luz.

Dois homens ladeando o Homem-sem-sombra.

O Comentador.

O Escultor.

Do primeiro o espanto de uma primeira apresentação silenciosa, feita sem palavras. Apenas a sua voz e a sua imagem entravam naquele apartamento, nas poucas vezes em que a televisão se mantinha ligada. Alguém que o Industrial nunca pensara travar conhecimento, pelo simples facto de que o Comentador nunca lhe suscitou nenhum outro sentimento para além de indiferença. Fazia parte de um grupo de rostos com vozes que viviam dentro de um mundo feito para entreter as massas. Para consolar aqueles que não sabiam lidar consigo mesmos nos momentos em que os seus corpo não estavam, ora a repetir um processo ensaiado até à exaustão, ora tomados pelo descanso, dormindo alheios ao peso da própria existência.

O seu amigo Escultor era claramente o responsável pela visita dos outros dois elementos, e rápido rompeu o silencio, transformando ideias em sons.

Está na hora de acabarmos com este País, disse de uma forma tão ligeira e descontraída, que o conteúdo parecia claramente desajustado.

O Comentador soltou um leve sorriso, como que confirmando a ideia geral.

O Homem-sem-sombra, mantinha-se de expressão imutável e de palavras tão presentes quanto a sua própria sombra.

Ao Industrial era claro que, não apenas aqueles três indivíduos estavam comungados de interesses comuns, como também aquele estranho personagem era a chave de tão bizarra proposta que, sabia estar prestes a ser desvendada.

Há muito que este País não existe, continuou o Escultor, apenas sobrevive.

O Comentador, contente com a direcção que a conversa tomava, decidiu acrescentar – devemos então prepararmo-nos para um novo parto!

O Industrial, que por norma detestava subtilezas linguísticas tais como as metáforas, parecia no entanto bastante interessado no que ainda havia para ser dito. O Escultor, decidiu retomar o pulso da conversa, interrompendo o Comentador, que claramente não estava avisado para o espírito pouco paciente do seu amigo. Ele sabia bem que o Industrial acreditava que tudo o que não era dito de forma directa e frontal, pouco valor tinha. A roupagem excessiva das palavras apenas as fragilizava. Geralmente tinha pouca tolerância a pessoas que gastassem muitas palavras.

Meu caro amigo, chegou a hora de tomarmos o poder.

O Comentador e o Escultor entreolharam-se fraternalmente, após o espanto que tal afirmação provocara no rosto do Industrial. Claramente haviam conquistado o momento. Apenas o Estranho continuava de rosto fechado e praticamente imóvel.

O visitado sentou-se calma e lentamente.

Abriu uma fenda no tempo.

Ele tinha esse poder de deixar normalmente pouco desconfortável quem com ele debatia, mesmo antes de dizer alguma palavra.

Portanto, começou em tom brando e amigável fitando o amigo, tu vens-me aqui hoje acompanhado por alguém que ganha a sua vida na televisão vendendo palavras e juízos, influenciando quem se sente cansado demais para pensar e fundamentar as suas próprias ideias. Depois à tua direita, alguém que ainda não tive o prazer de ouvir a voz, e que pela postura, não apenas vos prometeu esse assomo de poder, como os meios para o conseguir.

O ambiente carregou-se e o comentador sentiu o seu bom nome pisado em frente ao homem que o encarregara da missão. Não teve porém tempo para falar, na medida em que a voz do Industrial continuou a ressoar naquelas quatro paredes cada vez mais apertadas.

Se eu não soubesse que já interiorizaste completamente essa ideia, provavelmente dir-te-ia que transformaste-te na matéria com que revestes as tuas próprias esculturas – a insanidade. Assim sendo, apenas te tenho a desejar boa sorte.

As palavras, quando bem direccionadas, têm o dom de criar danos invisíveis, alojando-se em pequenas fissuras na mente de quem foi atacado. A fragmentação dá-se quando a vítima, em silêncio organizando pensamentos, tropeça nesses pequenos detritos dos quais não se soube defender na altura própria. Esse momento de lúcida percepção, é aquele que geralmente dá origem ao que convencionalmente apelidamos de vingança.

De ideias e mente contaminadas, o Escultor e o Comentador limitaram-se apenas a arrumar a confusão que aquelas palavras lhes haviam criado.

Apenas o Homem-sem-sombra parecia ileso de ataque tão cirúrgico e devastador.

Nós, concluiu em tom de solidariedade após a tempestade criada, não precisamos de refundar ou mudar o País. Não precisamos de destruir ou criar novas estruturas. Nós precisamos é de mudar de povo!

As palavras continuaram a flutuar no ar, em frente aos que as escutavam, demorando-se a desvanecer na sua própria essência que mais não é do que um som com significado. A custo, o rasto transformou-se novamente em silêncio.

As mentes do Escultor e do Comentador estavam já de saída, fechando consigo a pesada porta de metal, enquanto os corpos permaneciam imóveis, focando o Industrial. Apenas voltaram ao local de partida, pois pela primeira vez o Estranho avançou, e com ele a ausência da sua própria sombra.

Deixa-me te contar, disse, fazendo durar o momento em que aquela voz pela primeira vez ecoava na sala, como é que nós vamos mudar de povo.

Os espíritos dos dois homens que previamente o ladeavam, voltaram a tempo de ficarem ainda mais perdidos.

Obviamente, quando havia falado individualmente com cada um deles, aquele estranho não lhes tinha desvendado a totalidade dos seus planos.

Entretanto começara a chover.

AUTO DA BOA-FÉ (Parte 2)

20 Abr

O GABINETE

Quem o ocupava, tinha o poder.

Revestido com peças de cara extravagância, aquele espaço era um museu onde outras governações haviam deixado a sua marca. Um lastro bem mais visível do que aquela que haviam deixado no País.

O gabinete do Primeiro-Ministro, qual árvore genealógica democrática, começava-se a redesenhar com os primeiros e irreverentes raios de sol, que as grandes janelas não podiam evitar. Sobre o pesado sofá, um corpo despertava rendido àquela inconveniente intrusão luminosa. O governante máximo acordava de um sonho ligeiro, feito de matérias isentas de qualquer tipo de preocupação. Um revitalizador de uma consciência que, em breve voltaria a despertar arrastando consigo a leveza, que arduamente e a custo aquelas horas de descanso haviam conquistado.

O vulto levantou-se, e com ele, o peso do País. Assim descrito a todos os conselheiros e colegas de governo, com enfatização sonora para aqueles nos quais via brilhar na retina a esperança na sua sucessão.

A porta mal deu conta de si e das três pancadas que se fizeram sentir. O autor, entrou relutante, tão confiante quanto o martelar infligido na madeira que mal se ouvira no interior do gabinete. O governante perguntou-lhe inclusive porque tinha entrado sem bater.

Ele bateu Sr.Primeiro-Ministro, nós que daqui vos observamos, e com palavras relatamos este nascer do dia, podemos confirmar que ele bateu.

O Sr.Primeiro-Ministro não nos ouve, é certo. Primeiro porque isso é geralmente uma condição inerente à sua função. Depois, porque existe uma barreira temporal e espacial criada entre o narrador e a personagem. Apesar de neste caso se mostrar desvantajosa, tem geralmente grandes mais-valias, nomeadamente quando um personagem se revolta pelo destino a que é sujeito pelo narrador e decide passar à violência física.

O que não será este o caso, visto que coisas mais importantes ocuparão neste momento a mente do governante máximo. Ou pelo menos assim esperamos.

Continuemos então a narração, deixando de parte este desvio egoísta e claramente estranho, pois diz o manual que, não só o narrador se deve focar exclusivamente na historia, como também deverá perder este hábito bizarro de falar na terceira pessoa – coisa observada algumas linhas acima, e que não beneficia de forma alguma a fluidez narrativa.

Deixámos à pouco o Sr.Primeiro-Ministro irritado com a intrusão do jovem serviçal politico. Não se pense no entanto que este governante é alguém de difícil trato. Antes pelo contrário. Acontece porém que pequenas coisas insignificantes, tomam geralmente dimensões desmesuradas quando absorvidas por um espírito ainda em processo sonolento.

É essa a particularidade das manhãs. Se lhes escapamos, por culpa do corpo que rejeita a evidência de que o dia nasceu, é como se perdêssemos uma parte da vida, não apenas uma parte do dia. Como se saltássemos etapas na pressa de chegar a uma meta – que neste caso mais não seria do que a noite. Este fast-forward quotidiano deixa o corpo, que abraça o dia mais tarde do que o aconselhável, envolto num limbo de acidez estranha, sensível ao palato da mente.

Se em cada manhã nasce o dia, a perda deste parto astral – se consumida em exageradas doses – pode levar à perda de ligação com o mundo onde se habita.

Menos trágicas foram certamente as perguntas inúteis que o inseguro jovem foi disparando: acerca da qualidade do descanso, da dureza do sofá, do sol que aparecia mais cedo anunciando a chegada da estação quente. Aborrecido pelo conteúdo ou pelo tom da voz, quem sabe pela irreversível manhã que não se pode perder – como previamente foi evangelizado – o político mandou calar o aspirante a governante.

Pobre criança. O seu Pai havia-o avisado do mau génio do Primeiro-ministro, no entanto isso era o preço a pagar por uma futura ascensão política, pelo menos ele assim o pensava. Contudo a observação partia de um pressuposto errado – o carácter inflamável do governante máximo. Um mito que surgiu num dia em que um incompetente fora tratado como um incompetente. Reacção em cadeia, outros incompetentes foram passando a mensagem, no intuito de prevenir que um futuro tratamento igual pudesse ser desresponsabilizado pelo aparente mau feitio do governante. O jovem assessor acedia, receoso, calando-se, respondendo apenas quando interrogado, mergulhado na triste confirmação do que ouvira dos seus pares.

Após pesados minutos de silêncio o governante, recuperado pela evidência de que o dia impunha acção, pôs em prática aquela extraordinária capacidade que os seres humanos têm – a de transformar palavras perdidas nas encruzilhadas da mente em sons entendiveis a uma outra mente.

Sim senhor, tenho os dossiers comigo. Não, ela não está cá. Porquê, ora porque hoje é sábado Sr.Primeiro-Ministro, ela não trabalha aos fins-de-semana.

Curto e directo. O aspirante mostrava que aprendia rápido. Pena que o governante não prestasse a mínima atenção a esse facto.

Ela não trabalha aos fins-de-semana, repetiu para si mesmo o receptor das palavras. E tu, que fazes aqui então?

Eu, gaguejou o assessor procurando palavras em somas e subtracções mentais, eu…. eu sacrifico-me pelo meu País assim como o meu caro Primeiro-Ministro. Se o senhor não descansa, eu também não tenho o direito de descansar.

Foi de difícil construção, mas havia conseguido elaborar uma frase que o deixava orgulhoso. É óbvio que observada a esta distância, que nos separa daquele espaço onde político e aspirante respiram o mesmo ar, tudo soe a uma pieguice de difícil digestão. A verdade é que o autor daquele pedaço prosaico e determinista sentiu-se crescer alguns centímetros após espirrar tais palavras, e o Sr.Primeiro-Ministro – o líder por quem se deveria sacrificar – uma certa comoção por tamanho espírito de missão.

Estavam feitas as pazes entre o jovem assessor, agora confiante e sorridente mas que se fartara de mingar desde que entrara na sala, e o máximo governante.

Eu durmo no gabinete porque a minha mulher não me deixa dormir em casa, partilhou em tom de mútua comunhão, fixando depois os olhos no pavimento.

O jovem, pouco interessado no que navegava na alma do Primeiro-Ministro – a menos que a ele lhe dissesse respeito – balbuciou qualquer coisa imperceptível como que tentando desviar o assunto.

Irritado pelo desabafo com um simples assessor, o governante tentou recuperar a pose e o discurso mais rígido.

Secamente, pediu para que saísse, e, em coerência com o tom das próprias palavras, virou costas dirigindo-se à janela. Confuso se aquele momento, em por instantes tocara a intimidade do seu chefe de fila, tinha sido positivo ou negativo, o assessor saiu do gabinete fechando a porta, abrindo depois uma outra na sua cabeça. Reveria durante todo o resto do dia aquela situação matinal.

O Governante endireitou as costas, mas o peso não se soltou. Da Janela a vida corria em tons de primavera precoce, pois o Inverno ainda estava marcado nos calendários.

O telefone tocou. Por várias vezes e sem mostrar qualquer tipo de desistência perante a indiferença a que era vetado. Por fim o governante cedeu.

Do outro lado a voz do Vice-Primeiro-Ministro.

Estava explicada a insistência. Só ele conhecia os seus problemas matrimoniais, e só ele suspeitava do seu refúgio nocturno.

Muito bem, trabalhando até tarde em prol da nação. Em tom jocoso, como usualmente, o amigo dava-lhe os bons dias.

Perante a ausência de resposta, e para evitar silêncios constrangedores, a voz do outro lado encarreirou pelo que realmente interessava.

Tens visto as notícias?

Sim, ele via as noticias todos os dias. Em formato de papel ou em formato de um apresentador televisivo lendo um teleponto.

A menos que tenha acontecido algo de extraordinário ontem à noite, disse, posso-te confirmar aquilo que já sabes, que sim, que tenho visto as notícias.

Escapou-te a homilia de sexta-feira à noite.

Silêncio novamente. Ser por vezes espirituoso bem cedo de manhã, pode levar a um desperdício inútil de munições. Nada que desencoraja-se o Vice-Primeiro-Ministro.

E então, viste a homilia?

O Primeiro-Ministro mostrava-se impaciente. Aquela voz para além de o começar a irritar, falava-lhe por palavras nas quais ele se sentia perdido.

Antecipando o perigo, o amigo acrescentou que algo havia acontecido no programa do jovem comentador político.

Qual deles?

Aquele do ar impoluto, o que constantemente fala de corrupção e que vasculha na porcaria que a nossa máquina política por vezes vai deixando para trás!

Esse miúdo ainda tem tempo de antena!

Sim, muito! E depois de ontem…

Irritado com a frase em suspenso, o governante pediu que lhe explicasse então o que havia perdido, ao trocar o sofá pela televisão nocturna.

Tradicionalmente, poderiam ser referidos uma série de aspectos que, prolongando a acção, incorreriam num efeito muito pretendido por escritores, pretendentes e argumentistas – o de criar uma tensão até ao momento em que a personagem revela algo substancialmente interessante à narração. No entanto, dada a falta de detalhes – e na verdade a falta de paciência para os descrever – avançaremos para a conclusão deste capítulo – pois na verdade o primeiro-Ministro já nós olha furioso de lado, tal a demora que se vem verificando nesta espécie de epílogo telefónico.

Foi então com prontidão e temor, com a aparentemente boa disposição inicial encerrada em qualquer parte de si, que o Vice-Primeiro-Ministro explicou a razão de tão aflita chamada, uma revolução meu caro, uma revolução em marcha!

AUTO DA BOA-FÉ (parte1)

13 Abr

ELE

Ele era pequeno, de aspecto frágil e por vezes pouco cuidado. Tinha inveja dos vizinhos, mas sabia ser impossível viver ser eles. Era praticamente desconhecido pelos demais, mas nem sempre tinha sido assim. Houve tempos em que era associado a grandiosidade. Nos dias que corriam, as poucas referências ao seu nome vinham quase sempre acompanhadas por adjectivos pouco desejáveis.

Ele vivia dentro de um parêntesis do tamanho de uma fronteira, sendo que o essencial parecia-lhe por vezes acessório.

Ele arrastava-se entre aparentes espasmos de incontrolável euforia, e uma densa camada de pessimismo crónico.

Ele vivia em dívida.

Consigo próprio e com os que o rodeavam.

Ele queria ser bem mais do que a sua própria sombra projectada no chão.

Ele era um País.

BOA NOITE

O apresentador das notícias encerrava aquela meia hora de trágica homilia para dar lugar aos analgésicos que socorreriam as poucas mentes que, ainda acordadas pelos trinta minutos de carnificina noticiosa, ousariam talvez questionar o destino do País, entre dois anúncios a pensos higiénicos e um outro a uma cadeia de supermercados. A medicação consistia em doses irreais de lixo televisivo, empacotado em forma de miúdas magras e enredos mais básicos do que a mais pobre Franciscana história infantil.

O Industrial desligou a televisão.

Sincronizados, a última palavra do jornalista e o seu dedo sobre o telecomando.

Não há sofrimento necessário!

No mesmo instante, o Comentador-Político preparava-se para entrar em cena, em todas aquelas televisões que estivessem solidariamente sintonizadas para o receber.

No espelho a sua imagem reflectida. Alto, bem vestido, confiante. Ajeitar os cabelos era apenas uma formalidade sem sentido, mas repetida como se o seu desempenho dependesse dessa ligação espiritual estabelecida com o foro capilar.

O seu público escutava-o religiosamente nos dias em que o seu programa era emitido. Era como uma droga, chegara-lhe a dizer uma vez um espectador atento. E ele, era o traficante dessa matéria feita de palavras. Influenciar, através de uma ideia plantada bem no fundo de quem o escutava, era uma forma de poder extraordinária. Limpa, sem desgaste, corrosiva para as suas vítimas, mas tonificante para si mesmo.

Todavia naquela noite tudo seria diferente.

Fora incumbido de uma missão.

A contagem decrescente para o início do programa, através da voz rouca do produtor, assinalava que esta estava prestes a ser cumprida.

O Industrial manuseava papeis e números, numa espécie de transe que muitos chamariam de trabalho. Ele chamava-lhe religião.

Adoptara a designação que o seu amigo escultor um dia lhe transmitira. Um artista que detestava artistas, que nunca aparecia nas inaugurações das suas exposições, que nunca aparecera numa revista ou concedera uma entrevista a um jornal. Um amigo, das poucas pessoas a quem tinha paciência para escutar, que um dia lhe dissera que o que ele fazia não se designava por trabalho. Isso é algo que as pessoas comuns fazem, numa rotina de fazer inveja à constante passividade das estações, onde um verão nunca surgiu antes de uma primavera, mas sempre depois. Tu transformas, dizia-lhe, uma ideia em matéria. Adormeces a pensar em soluções, e acordas desperto por novos problemas. Dentro de ti, não é o sangue que corre nas veias, assim como não é de comida que te alimentas. Sentes o ar rarefeito de cada vez que as barreiras parecem intransponíveis, e só respiras melhor quando te encontras já do outro lado do obstáculo. E aí, em vez de alcançares com a vista o que ficou para trás, em acto de mero regozijo pessoal, olhas apenas em frente, à procura da próxima barreira a ser transporta. Isso, concluiu, não se chama certamente trabalho. No entanto, as minhas limitações como escultor não me permitem encontrar a palavra que defina esse estado de espírito. Mas se quiseres mesmo que lhe dê uma rotulagem, chama-lhe religião. Grande mal não deverá advir de tal assombro semântico!

Uma noite.

E o Industrial possuído por essa força sem designação, alheio do ambiente que o rodeava, flutuando em si mesmo, fora de si mesmo.

Na caixa de voz do seu telemóvel, uma mensagem tão confusa, quanto o tom de voz do emissor. O Escultor dizendo que se um estranho o visitasse, que perdesse tempo a escuta-lo pois ele mesmo o enviara.

No estúdio de televisão o Comentador chegava ao fim da sua missão. O apresentador, ainda não refeito do choque que aquelas palavras haviam provocado, bebia sofregamente água tentando libertar o nó que na sua garganta se formara. A equipa de produção entreolhava-se incrédula. Os telefones começavam a tocar frenéticamente.

Antes que alguma palavra lhe fosse dirigida, o Comentador levantou-se, saudando os demais, dirigindo-se em direcção à porta.

O Estranho a quem praticamente não vira a cara na noite anterior, deveria estar naquele momento feliz com a conclusão da missão de que o havia incumbido. Das sombras, que haviam encoberto o seu rosto, apenas as palavras interessavam. E essas, haviam sido agora repetidas em pleno horário nobre perante todo o País. Ele que sempre se orgulhara da sua capacidade intelectual e poder de dissuasão, havia sido arrebatado por quinze minutos de conversa, com alguém a quem nem sequer vira o rosto. E para quem se tornava agora, no mais fiel soldado.

No seu apartamento, o Industrial via porém o rosto do Estranho que se apresentava, não sobre as trevas, mas sim debaixo da luz incandescente que iluminava todo aquele espaço.

Um rosto duro e pesado, incapaz de encerrar em si a profundidade daquilo que a sua boca se preparava para dizer.

O Industrial esperava curioso.

Apenas um pequeno detalhe o deixava constrangido.

Sem explicação aparente o individuo que se encontrava à sua frente e debaixo da mesma luz, não projectava nenhuma sombra.

 

Homofobia

30 Mar

Eu e a minha Companheira descíamos do autocarro. Atrás de nós, uma longa viagem, que consumiu todas as horas da nossa primeira noite, no País em forma de bota. O primeiro avião, havia aterrado na Capital das miúdas magras . O segundo avião, que nos levaria à Capital do Renascimento, onde deveríamos passar um ano das nossas vidas, nunca chegou a levantar. Foi um autocarro, em forma de arca cheia de esperanças e expectativas, que nos transportou ao destino, sem que antes se perdesse em pequenos incidentes, que todos juntos, levaram a que uma viagem de 3 horas, demorasse 6.

Toda esta introdução para dizer que, que na primeira hora em que pisamos um chão diferente daquele da casa dos Pais, após uma viagem em que a noite rapidamente se transformou em dia, tínhamos à nossa espera um amigo, amigo de um amigo, amigo de um amigo. No essencial, um estranho, de quem praticamente nem sabíamos bem o nome, acolhia-nos e abria-nos a porta de sua casa. O meu alarme suou logo em tons de negro. A minha brilhante mente havia logo ali, num primeiro relance, descortinado toda aquela tramóia. “O gajo”, devem ter sido estas as palavras que cruzaram o meu pensamento, “é larilas, e vai-nos acolher em sua casa até que encontremos uma. Tou fodido!”.

A minha educação num lugar onde a religião ainda tem um papel importante, como filtro de um mundo que aparentemente somos incapazes de apreender por nós próprios, traçou claramente o meu plano de acção para as próximas horas – sair dali para fora o mais rápido possível. Ele mostrou-nos o quarto onde nos instalaríamos, disse para descansarmos, e fechou a porta desejando-nos uma estadia feliz. Fixei a minha Companheira, que não parecia minimamente afectada pelo quadro em que estávamos envoltos.

Dei-lhe a entender a minha preocupação.

Ela mandou-me dormir.

Soltei mais duas ou três palavras.

Ela ignorou.

Fui dormir.

Acordei algumas horas depois.

A minha Companheira ainda dormia, e levantando-me para ir à casa de banho vi o nosso anfitrião que dormia no chão do corredor, num pequeno colchão que parecia tão desconfortável quanto o próprio pavimento em si.

Foi nesse momento que compreendi.

Ele tinha-nos deixado o seu próprio quarto.

Senti um soco no estômago, do tamanho de toda a porcaria que me havia consumido a mente desde o primeiro momento que o conhecemos.

Mais tarde, todos de olhos bem acordados, quisemos reverter a situação. Ele deveria voltar ao seu quarto e nós arranjaríamos outra solução. Eu não queria ficar em dívida.

Não, éramos jovens, primeira vez fora da casa dos Pais, num País desconhecido, tínhamos de estar pelo menos confortáveis, para superarmos todos esses factores negativos. Assim insistia. E assim continuou a dormir no corredor. Segundo soco no estômago.

Levou-nos a conhecer a cidade, ajudou-nos no que pedíamos e no que não pedíamos, pois no fundo sendo Portugueses, a herança genética obriga-nos a tentar incomodar o menos possível. Ele deve-se ter apercebido disso, pois diluía toda a trabalheira que tinha connosco, numa espécie de aura que não nós levava a sentir o estorvo, que afinal éramos.

Foi cinzento o dia em que nos mudámos para o novo apartamento.

Ele tinha sido um irmão, um Pai, uma Mãe, acima de tudo um amigo que transformou toda aquela avalanche cultural tão distinta da nossa, num lugar onde por muitas vezes nos sentimos em casa. Continuamos a nos encontrar, infelizmente sem a mesma frequência que outrora. Nunca nos cobrou pelas mensagens que nos esquecemos de responder, ou pelas vezes em que tivemos que cancelar um jantar, ou pelas vezes em que nos esquecemos do seu aniversário, ou simplesmente quando nos esquecíamos de dizer obrigado.

Um ano mais tarde, quando voltei numa outra missão escolar, embora por um curto período de tempo, lá estava à nossa espera, com o mesmo sorriso nos lábios, com a mesma vontade de nos fazer sentir felizes e aconchegados.

Por isso, meus caros, sempre que vejo alguém negar a um homossexual o acesso aos mesmos direitos básicos que um heterossexual tem, é a ele, ao meu amigo, a quem vejo isso ser renegado. Quando oiço vozes carregadas de ódio e medo, de hipocrisia e mesquinhez, sei que é a ele que os cobardes atacam.

Sei que é o rosto dele que é martirizado de cada vez que um crime é cometido com base numa descriminação sexual.

Sei que é ele que é perseguido, enquanto que nós, mesmo que no fundo nos sintamos indignados, temos dificuldade em o verbalizar, não vá também a sociedade nos rotular.

Sei que ele é a base das piadas com que por vezes me rio.

Sei que basta!

Basta de olharmos para o lado e nos fazermos passar por tolerantes, mas mesmo assim não movermos um dedo sequer para apontar a quem ainda ousa se reger por valores e ideias pré-históricas.

Basta deste receio de interromper o discurso a quem se baseia em ideias, que no fundo e de forma racional podem ser consideradas criminosas.

Ninguém deixaria a que um irmão lhe fossem negados os direitos mais básicos, nem ninguém permitiria que o maior amigo fosse alvo de chacota.

Eu pelo menos não o permitiria, nem permitirei.

 

Síria: Granadas de Esperança

16 Mar

 

Na quinta-feira, a edição do Le Monde, trazia na capa A imagem da resistência a um ano de terror na Síria. Um homem, de um nome incapaz de ser guardado na memória ou mesmo pronunciado desde lado do mundo, erguia as duas mãos, fazendo o sinal de vitória, perante a objectiva do fotógrafo. A sua mão direita, intacta,  relembrava-me apenas a repetição daquele sinal tão presente, mas sempre repleto de esperança, para quem o ousa fazer. Uma catarse, para todos aqueles que acreditam que não se luta apenas por uma ideia, mas sim por um fim – o objectivo alcançado, ou mesmo o seu próprio fim às mãos de tiranos, mas com o espírito repleto de uma força que não pode ser vergada. A mão esquerda, erguia-se incompleta, desfeita. Daquela massa que outrora ergueu, talvez mesmo, as paredes que enquadravam aquela foto, restavam apenas dois dedos – os dois mais pequenos. O polegar, o indicador e aquele outro -tanta vez usado como sinal de desobediência- foram desfeitos por um engenho explosivo, que fora obrigado a segurar, numa abjecta e abominável sessão de tortura em que esteve envolvido. Os dois dedos mais insignificantes, aqueles a que fora reduzida a mão, dignamente erguidos, de uma força imensurável, demonstrando aquilo que nenhum tirano aprendeu até hoje. Que não existe insignificância na vontade dos mais pequenos, mesmo naqueles que nunca ousarão subir a escadaria branca que normalmente leva ao poder. Que não existe insignificância naqueles que nunca aprenderam a conjugar verbos com adjectivos, ou a vestir uma cara com contornos diferentes daqueles que realmente navegam dentro de si mesmo, mentindo em cada aperto de mão, poluindo a cada palavra debitada. Os mais invisíveis, possuídos pelo desejo de serem donos do seu destino, são como aqueles dois dedos. Há quem vomite que são apenas fantoches movidos pela embriaguez de algo que se assemelha a liberdade, e que no fim serão apenas cartas recicladas nas mãos de outros iguais aos antecessores. Talvez assim seja, mas nessa acidez de quem não vê mais do que a vista alcança a partir do sofá, não cabe a percepção de que há quem viva nesse limiar do risco – o de desejar viver uma vida mais significante do que aquela a que sempre foram subjugados.

Ontem, cumprimentei o José Luís Peixoto

17 Fev

Queria apenas cumprimentá-lo, esperar o momento justo, estender-lhe a mão e sentir do outro lado, uma pele igual à minha, mas feita de matéria diferente. Que ele nunca assumirá, mas que nós, que o lemos, sabemos ser distinta. Comigo, apenas o livro chamado livro, como defesa. Se me faltassem as palavras, podia simplesmente estendê-lo, e assim ganhar algum tempo, enquanto ele o assinasse.

“Olá, como te chamas”, perguntou enquanto estendia a sua mão, derrubando assim com quatro sons, a estratégia previamente definida.

Tive que falar.

Por sorte, desde pequeno decorei o meu nome, que nestas situações de aperto, confirma-se a utilidade.

Eu sei que o tempo não pára, eu sei.

Mas ali, parou.

Tinha parado também, se bem que de uma forma diferente, duas semanas antes, enquanto esperava um sim.

Essas duas experiência pessoais, levaram-me a derrubar fundamentos científicos, em apenas 15 dias. Nada mal para um pragmático como eu.

O dia fora passado em sobressalto.

No trabalho grandes mudanças se avizinhavam, merecedoras talvez de uma profunda reflexão. E eu ali, a pensar nas horas, nervoso, as que tinha ainda de riscar até às oito da noite.

Por várias vezes disse à Joana, que tinha dificuldade em me aproximar daqueles que mais admiro a obra. Nunca me considerei merecedor de tais confianças, capaz de desperdiçar com banalidades fonéticas o tempo de quem as transforma em relíquias. Mas ontem tinha de ser egoísta.

“É pá, o homem vem aqui a uma livraria, dois passos ao lado da tua casa e tu, escondes-te em pequenos pedaços? Estende-lhe ao menos a mão, cumprimenta-o, pode ser que qualquer coisa aprendas por osmose!” Esta voz, a da consciência, ou do pensamento, não sei bem, para além de inconveniente e pouco dotada do dom da palavra, é virulenta, alastra-se em ideias pelo corpo inteiro, e quando damos conta, estamos já infectados, prontos a ser comandados. Uma ideia é quase sempre coisa perigosa.

Contaminado de coragem, lá fui.

José Luís Peixoto.

Um livro chamado livro, aberto.

E uma caneta.

E depois foram palavras, coisas que disse, respostas a perguntas que simpaticamente me fazia. Contei-lhe que tinha pedido a Joana em casamento, em Barcelona, que o fiz através de um livro. Que reaprendi a escrever, no dia em que li as duas primeiras linhas do “Cemitério de Pianos”, que tal como ele era filho de um carpinteiro, e de uma pequena aldeia, daquelas onde o tempo passa mais devagar. Que era imigrante, e que reconhecia no livro chamado livro, a dificuldade da partida e a dor na indefinição da chegada. Se calhar disse-lhe mais coisas, mas agora já não me recordo.

Depois, calei-me por uns instantes, dando-lhe oportunidade de acabar a dedicatória no livro, que ele fazia questão de personalizar em cada página aberta que lhe era estendida. E muitos foram os que se aproximaram com páginas à espera de serem preenchidas.

Ele desenhou também um sol, de forma generosa, para que aquela ausência a que estamos sujeitos, enquanto deslocados – hoje apetece-me chamar-lhe assim – fosse suprimida. Talvez por desconhecimento, humildade mesmo, ele não sabia o calor que aquele livro chamado livro, já me havia trazido. O calor da minha aldeia, daquelas gentes que dizem palavras com o olhar de forma a não as gastarem tanto, o calor da chuva que aquece a alma, quando do alpendre vislumbramos os campos que ao longe lentamente se transformam em bruma.

Mas não lhe disse isso.

No final, quando me estendeu a mão, o tempo voltou a correr normalmente.

As minhas intenções mais egoístas, recordavam-me que eu poderia passar horas a conversar com o José Luís, apesar de ele não me conhecer e de eu não lhe trazer uma milionésima parte do que as suas palavras, escritas e pronunciadas, me trazem. No entanto, ele tinha que ser devolvido ao mundo.

Cruzei a porta de saída, com a esperança de que um dia, algo escrito por mim chegará às suas mãos, e que ele, nesse mundo de fantasia, abrirá as páginas uma a uma, e, calmamente sentados em cadeiras de madeira, me dará conselhos e palavras, que juntas com outras palavras formarão um texto.

Os escritores têm esta capacidade de comandar o tempo nos seus livros.

Eu desconhecia é que houvessem alguns capazes de o fazer também na vida real.

O Homem que nasceu duas vezes – A história de Cavaco

10 Fev

Eram duas vezes um homem chamado Cavaco. Duas vezes, porque corria o rumor de que aquele homem, por artes até hoje desconhecidas, havia nascido em dose dupla.
Naquele País, que alguns geómetras pouco cuidados apelidavam de rectângulo, nasceu um dia, e pela primeira vez, uma criança, que mais tarde se tornou um adolescente, e mais tarde ainda um adulto. No seu percurso por aquelas estradas mais curvas do que rectas, que alguns apelidaram de política, embora à revelia de Platão, que quando ouviu tal comparação se revirou três vezes no túmulo, Cavaco procurou sem descanso aquilo a que nos livros alguns apelidaram de – honestidade. Dizia-se que as gentes daquele pobre País, eram incapazes de aceder a tão afortunado dom divino, e que se um dia alguém encontra-se o caminho para tal virtude, asseguraria um lugar de destaque entre os demais. O nosso herói, revestido de uma capacidade de sacrifício incomum, dificilmente adjectivável por parte daqueles que viviam em decadência, procurou incessantemente a fonte de extraordinária capacidade. Mas em vão. Se o percurso se adivinhava espinhoso, mais ainda se tornava se, nas indicações dos que o rodeavam confiasse. Cavaco, procurou, por veredas e caminhos, muitas vezes ao engano de malfeitores que se diziam companheiros, a porta que lhe anunciasse o fim de tão valorosa demanda.
Anos foram passando, sucedendo-se a outros iguais, um acumulado de tempo calendarizado.
“Ao que vais?”, perguntavam-lhe os estranhos que o abordavam nas ruas.
“O que procuras?”, insistam perante a ausência de respostas.
Cavaco ignorava-os, pois achava-os incapazes de perceberem, pois quem não compreendia a dimensão do fim, jamais entenderia o esforço da procura. A assim foi somando passos e pegadas, num emaranhado de locais e rostos, todos eles sempre distantes do que o movia.
Até que um dia, um dia de estranho nevoeiro, daqueles que dão muito jeito a quem relata histórias ou contos dada a intensidade dramática da cena em si mesma, Cavaco encontrou um estranho, que não lhe fez nenhuma pergunta, apenas lhe apontou o caminho.
Dias depois, quando foi anunciado que Cavaco havia morrido, que se tinha evaporado juntamente com  bruma que o havia parido, o País festejou. Estavam livres de personagem tão caricato, pouco dado a conversas, e de uma sobranceria existencial que incomodava a mais pacata das estátuas. Mas por pouco tempo. Os festejos acabaram com o rebentar do último foguete atirado nessa mesma noite.
Descobriram ao sabor daquela ressaca matinal, que afinal ele tinha voltado a viver.  Desta vez mais forte do que nunca. Havia nascido duas vezes, e com ele a capacidade que tanto ansiara – era finalmente o Homem mais honesto daquele rectângulo. A seu lado, personagens bíblicas envergonhavam-se com a resplandecência de tal virtude.
Tomou o poder de vez, e com ele todos aqueles que à sua mercê e pedindo sua esmola, o haviam seguido nessa sua busca incessante. Tudo lhes era permitido, pois Cavaco, o mais humilde, atestava por eles. E contra tão valorosa palavra, nada havia a fazer. Ele era a voz da moralidade, aquele a quem ninguém ousava contradizer.
O País, governado por tão valoroso soldado, apenas podia esperar dias de extraordinário crescimento. O futuro, outrora monocromático apresentava-se colorido, com céus límpidos e noites estreladas. Cavaco, o homem que nascera duas vezes, rescreveu a história do País que outrora foi, e que cada vez mais se arrisca a deixar de o ser.
Bem haja a Cavaco!